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Tag: Linguagem

Vilomah

Meus sentimentos meu caro desconhecido. Eu não posso nem imaginar o você está passando.

No curso natural das coisas, o mais comum é que os filhos enterrarem seus pais. Os pais enterrarem os seus filhos é o incomum. Talvez por isso é uma situação que tão profundamente triste. Não só a tristeza da nossa própria finitude mas também o da inversão da ordem daquilo que entendemos como o natural. Tamanha é a estranheza disso que nós não temos uma palavra pra isso.

“Uma esposa que perde um marido é chamada de viúva.
Um marido que perde uma esposa é chamada de viúvo.
Uma criança que perde seus pais é chamada de órfão.
Não existe uma palavra para um pai que perde um filho.
Isto é o quão terrível é essa perda.”
Jay Neugeboren – O Conto de um Órfão, 1976.

É estranho não termos uma palavra pra isso. Existem muitos motivos legítimos pra não associarmos uma palavra a um significado. Talvez esse significado não exista ou não exista nem sequer como uma ideia de uma coisa que não existe. Ou talvez esse significado não seja frequente o suficiente pra justificar uma palavra. Mas essa dor, essa lembrança, esse significado, ele existe. Não só existe como uma possibilidade mas também como uma realidade. E esse significado também não é tão infrequente, é suficiente dizer que ele está aqui e agora.

Talvez a ausência dessa palavra venha do nosso medo desse significado. Tal como a J. K. Rowling falava sobre “aquele que não pode ser nomeado”. Um receio de se conjurar um significado através da escrita ou pronúncia de uma palavra. Daí longe das bocas, dos livros e portanto dos pensamentos, o significado pudesse ser banido desse mundo. Porém, na realidade, como eu já disse, este significado está aqui e agora.

Pensando e procurando sobre isso eu encontrei um ensaio da Karla F. C. Holloway chamado Um Nome para um Pai que Perdeu um Filho. Nele ela propõe que assim como a palavra viúva veio do sânscrito विधवा (vidhávā) seria apropriado tomar uma palavra também do sânscrito pra nomear isso que ficou sem nome. A palavra é vilomah que significa “contra a ordem natural”.

Vilomah é um nome para a dor que nós representamos. Pode soar estranho no início. Mas nós nos acostumamos com a palavra “viúvo”. Não é tão diferente, e compartilha a mesma etimologia.

Então meu caro desconhecido, eu não posso te oferecer nada nesse momento mas eu posso te dar essa palavra, vilomah. Ela parece uma palavra nova mas ela tem milhares de anos. Me parece apropriado pra dimensão que parece ser essa dor. Eu achei muito linda a árvore que você me mostrou. Eu desejo que vocês encontrem paz nas suas vidas.

Representação e Linguagem em Ferreira Gullar

Ferreira Gullar sentado na escada
Ferreira Gullar

Há um tema que é recorrente quando se estuda por exemplo Inteligência Artificial, Linguagem ou Filosofia, é a Representação das coisas. Há um trecho de um poema do Poema Sujo – um fragmento: “Velocidades” do poeta maranhense Ferreira Gullar que não só exemplifica muito bem as dificuldades de se representar e compreender as coisas e o conhecimento mas também nos mostra que isso é algo que aflinge desde o Poeta até o Computólogo.

O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está
em qualquer outra
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando um vento ali a folheia

a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que um pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo

a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa

cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma

a cidade não está no homem
do mesmo modo que em sua
quitandas praças e ruas